quinta-feira, 5 de maio de 2011

Desafios para o Agroecologista


Horacio Martins de Carvalho

(Curitiba, 31 de julho de 2007)

1.      A reprodução social do campesinato

Se considerarmos que a racionalidade camponesa tem como ponto central a reprodução social da família, subentendendo nessa assertiva a reprodução continuada e crescente de melhoria das condições de vida e de trabalho, é possível e pertinente se afirmar que na sociedade brasileira contemporânea essa reprodução camponesa pressuporá uma relativa e crescente monetarização da sua economia para dar conta das necessidades objetivas de acesso a bens e serviços tanto para o consumo familiar como para o desenvolvimento das forças produtivas dos seus processos de trabalho na unidade de produção camponesa.

Sem dúvida alguma que os hábitos de consumo familiar e os hábitos de trabalho são largamente influenciados pela ideologia dominante a qual, afirmando os valores da sociedade capitalista neoliberal, tem na inovação constante e no consumismo alguns dos seus referenciais necessários para garantirem a taxa média de lucro da empresas capitalistas, considerando-se, ademais, que a exploração do trabalho, seja o assalariado seja o dos camponeses, é uma constante da reprodução do capital.

Mesmo que os camponeses consigam manter um relativo equilíbrio na dinâmica econômica e social da reprodução da sua unidade de produção, seja ela unifamiliar ou multifamiliar, ao manter tanto as relações não-mercantis (autoconsumo e trocas comunitárias) como as mercantis (vendas e aquisições nos mercados), a tendência geral da sociedade capitalista oligopolista é a de determinar preços relativos cada dia mais desfavoráveis para os produtos  primários “in natura” ou semimanufaturados em relação àqueles industrializados.

Caso essa premissa seja válida, tudo leva a crer que os camponeses deverão enfrentar, no curto e médio prazo, enquanto permanecer na formação social brasileira a dominação do modo de produção capitalista oligopolista de caráter mundial, hoje hegemônico, a exigência de ampliarem seus esforços produtivos e de gestão da unidade de produção camponesa para obterem mais dinheiro nas trocas comerciais para, com ele, darem conta de parcela cada vez mais crescente dos consumos familiar e produtivo de mercadorias e serviços que lhes são intrinsecamente necessários ao seu padrão reprodutivo, este de maneira crescente, cada vez mais determinado pela inovação e propaganda capitalista.

            E, além dessa dimensão microeconômica e social, caso a unidade de produção camponesa contemporânea seja concebida também como a negação da empresa capitalista nas lutas sociais para a implantação de uma nova concepção de mundo e, portanto, portadora de um novo paradigma para um outro modelo de desenvolvimento rural, essa unidade de produção camponesa, singular ou em cooperação, deverá dar conta da demanda nacional de alimentos para a população e de insumos para as indústrias de transformação que utilizam matérias-primas de origem agropecuária e florestal. Mais ainda, de garantir volume e qualidade na oferta de produtos de origem agropecuários e florestais para a exportação.

            Ora, enfrentar simultaneamente a queda relativa e constante dos preços recebidos pelos produtores rurais e a necessária ampliação da oferta para atender à demanda da economia nacional e internacional exigirá dos camponeses, associados ou não, um esforço concentrado e ousado de aumentar a escala de produção, diversificar a oferta de alimentos e de matérias primas para a industrialização interna e para a exportação, assim como incorporar processos de gestão da unidade camponesa que garantam, por um lado, a autonomia relativa camponesa perante o capital e, por outro lado, o aumento da escala e volume de produção.

            Essa ousadia camponesa não poderá esperar, ainda que assim ocorra na maior parte das situações e casos, os tempos culturais tradicionalmente adotados pelos próprios camponeses, vivenciando as mais diversas maneiras de inserção territorial, para incorporarem mudanças no seu modo de ser e de viver. A classe dominante, na sua expansão no campo e na renovação das formas de exploração e subordinação camponesa, não respeita os tempos culturais camponeses e tende a homogeneizar o modo de produção no campo. Isso ocorre seja porque as políticas públicas lhes favoreçam essa crescente subordinação do campesinato à burguesia, via a política de crédito rural e as tecnologias que induzem os camponeses a mudarem seus referencias de produção, seja porque a grande empresa capitalista lhes impõem, além dos novos modos de produzir, novas demandas de consumo de bens e serviços.

            Isso não significa dizer que os movimentos e organizações sociais populares e sindicais no campo adotem os mesmos métodos e critérios de relação social com os camponeses que aqueles adotados pelas classes dominantes. O que, sim, desejo enfatizar, é que a variável ‘tempo político’ deve estar presente nos esforços de mudança e afirmação, numa dialética continuada, do modo de ser e de viver camponeses. A fala que consagra os tempos culturais camponeses, ainda que apoiada num processo de respeito às pessoas e ao seu que-fazer, necessitaria incorporar a reflexão sobre a correlação de forças econômicas, políticas e ideológicas em presença.

O que desejo destacar, e aqui reitero, é que a luta pela afirmação e ampliação da economia camponesa deve dar conta dos tempos políticos do capitalismo dominante que, no seu processo de homogeneização do modo de produção no campo, ora submetem ora devastam o campesinato.

A empresa capitalista utiliza métodos de mudança social que induzem os camponeses a se sujeitarem aos interesses do capital. São métodos ora sutis, ora coercitivos. E a maioria dos camponeses muda, adota o jeito de ser e de fazer induzido pelas empresas capitalistas. Ou, num processo de diferenciação do campesinato, estes acabam ora por depender das políticas públicas compensatórias ora abandonam a terra, isto devido à impossibilidade efetiva de nela permanecerem como produtores em face das complexas combinações de fatores que se arranjam diferentemente em decorrência das situações diversas de contextualização econômica, social e histórica dos camponeses.

            A ofensiva política de caráter democrático e popular dos movimentos e organizações populares e sindicais no campo não pode se contrapor a esses métodos com outros similares. Todavia, os métodos participativos, ainda que mais demorados para darem conta das descobertas populares, devem levar em conta a velocidade das ações dos adversários. Caso essa velocidade seja desconsiderada, os camponeses tenderão a sucumbirem aos interesses do capital pela falta de alternativa imediatas de ação para resolver seus problemas de reprodução social no contexto contemporâneo.

Subordinar as mudanças sociais do campesinato que lhe permitam um aumento de escala e volume de produção, tendo em vista enfrentar os desafios de demanda de alimentos e de matérias primas de origem agropecuária e florestal, a uma hipotética mudança nos hábitos de consumo da população brasileira e mundial, hábitos esses induzidos pela concepção de mundo capitalista, seria o mesmo que afirmar que as mudanças sociais necessárias para a afirmação do campesinato deveriam aguardar a revolução socialista ou similar que deverá um dia se dar no país.

Os camponeses brasileiros, na sua maioria, vivenciam uma crise objetiva de baixa geração de renda monetária. E isso, além de lhe manterem em situação relativa de pobreza, lhes impedem o acesso aos bens materiais e serviços hoje ofertados pela diversificação e crescimento da oferta capitalista que, mesmo sendo referenciais de uma sociedade de consumo, poderiam lhe facilitar a redução da penosidade do trabalho, o aumento relativo da produção e o da produtividade do trabalho e do solo e, como consequência,a obtenção de uma melhor qualidade de vida. Refiro-me aqui sobretudo a três aspectos: a motomecanização leve, a novas formas de gestão da unidade de produção e a uma escala gradual de incorporação de tecnologias baseadas nos princípios da agroecologia.

Portanto, não advogo nem a subordinação dos camponeses ao capital, nem a reificação da vida bucólica camponesa baseada numa pobreza engrandecedora. Está-se perante um desafio complexo e difícil que não permite nem a perplexidade perante o real nem respostas mecânicas que omitam a afirmação do camponês como classe social[1].

Aumentar a escala e volume da produção não significa subordinar os camponeses ao modelo de produção dominante, nem à matriz tecnológica que lhe dá respaldo. Por outro lado, as alternativas tecnológicas e de cooperação camponesa à esse modo de produção dominante não deveriam ser de tal ordem que exijam tempos de mudanças social camponesas incompatíveis com a correlação de forças políticas determinadas pela racionalidade capitalista.

            O aumento da escala da produção camponesa, aliado à diversificação de cultivos e criações, do aumento da produtividade e de relações menos degradadoras do meio ambiente, não pode estar condicionado às mudanças gerais (em toda a sociedade) na concepção de produção e consumo hoje imperantes. Essa premissa se aplicada literalmente pode se tornar uma forma de escapismo político para não se enfrentar objetivamente as demandas concretas de se ampliar a escala de produção e a produtividade da unidade de produção camponesas.

            Mantida a incipiente escala de produção camponesa, mais ainda se limitada exclusivamente à produção para o autoconsumo, a tendência será a ampliação do êxodo rural dos camponeses, seja pela crescente pobreza seja porque tenderão a se subordinarem ao agronegócio através de associações pelos contratos de produção, cessão de terras para arrendamento ou perda da terra por endividamento.


[1] Ver Carvalho, Horacio Martins (2007). O campesinato na dinâmica contraditória das classes sociais no campo. Curitiba, janeiro,  mimeo 29 p.

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